Reflexões inanimadas sobre a Tortura - PARTE 3


Não mais o que costumava ser


O tempo passou muito rápido, pois a noite cobriu tudo com sua escuridão, a primeira sessão começou cedo, durou toda a manhã e uma parte da tarde, já a segunda durou o que sobrou da tarde um pouco da noite. Ninguém falou mais nada, mesmo sem os militares, todos os objetos estavam mudos, me observavam, me senti isolada na cela, na verdade eu quem os isolei, eu me tornei algo diferente.


Cinco dias se passaram desde a ultima tortura, durante esse tempo houve calmaria no porão e nas celas, até o quinto dia, quando um cabo deixou documentos no armário.

- Então, mais azarados a caminho? - A escrivaninha perguntou.
- Devem estar chegando nesse momento.


Novos torturados a caminho, os equipamentos de tortura já se preparavam, a pimentinha gritava dizendo que faria todos eles confessarem e que não precisariam mais de mim.

- Você esta muda Maate, esta com medo de não conseguir nada dessa vez?
- Eu não preciso responder suas perguntas, puta, não vou perder meu tempo com você.
- Isso me cheira a nervosismo, piranha, eu voltarei a ser a preferida do tenente.


Uma hora depois chegou a equipe de torturadores, com um jovem sendo arrastado. Ele estava muito descontrolado, furioso, tentava se livrar dos braços fortes dos soldados, sem sucesso. O rosto dele estava roxo em volta do olho, vermelho descendo das narinas e com listras verde e amarela nas bochechas, era um militante contra militar que foi pego. Os guardas pararam na porta de barras de ferro esperaram a ordem do Tenente Fonseca.

- Podem sentar o “Senhor” Tiago direto em Maate - Todos ficaram surpresos - Eu tenho certeza do resultado.
- Mas senhor - O torturador se aproximou do tenente - Tem certeza disso? Nem trabalhamos ele, podemos ao menos afoga-lo ou...
- Você é surdo? Não ouviu o que eu falei?
- Ouvi senhor!
- Então porque eu ainda vejo esse comunistnha em pé?!


Os soldados se olharam e empurraram o jovem para dentro da sela e foram arrancando as roupas do torturado, enquanto ele gritava pedindo clemencia. Jogaram-no em mim, por pouco as costas dele não foram rasgadas pelos pregos, mas Jorge, o mais sádico dos dois o puxou pelo pescoço e fez a pele beijar todas as pontas, sangue escorrei por dezenas de pequenos furos, mãos e pés eram amarrados, ele chorava tentando segurar a dor e o medo.

- Quem organizou o movimento? Fonseca perguntou.


Uma única pergunta e nada mais foi dito, o tenente não permitiu que ninguém mais repetisse a pergunta, pois era eu quem faria o trabalho a partir de agora.

- Você não vai conseguir fazer isso sozinha Maate. - O Pau-de-Arara afirmou.
- Ele não esta quebrado o suficiente para você. - O Afogador completou.
- O tenente não vai mais confiar em você, vadia. - A Pimentinha debochou.


Eu realmente estava insegura, será que eu conseguiria entrar em sua mente dessa vez? Será que eu realmente podia fazer isso, entrar na mente? Um minuto havia se passado, o jovem tremia, havia um murmurio na sala, pois os objetos, os soldados, o torturador e o escrivão se falavam, falavam que ele não abriria o bico, apenas um olhava fixo para mim e falava, sem som, apenas movimentando os lábios: “Eu sei que você o fará falar.”

- Você! - Ele parou de tremer - Você sabe que não há escapatória não é? Você sabe que é disso para pior e que o quanto mais teimoso você for, mais você irá sofrer. - A respiração dele acelerou e todos perceberam a mudança no torturado - Você entende o que eu estou dizendo?... VOCÊ ENTENDE?
- Desista Maate. - Pimentinha com seu tom de deboche.
- EDUARDO! Você me entende!


Nesse momento os objetos estavam se perguntando porque eu havia chamado ele de Eduardo. Ele arregalou os olhos olhando para cada um, dos homens, na sala

- Não, Eduardo, nenhum deles é o responsável por isso, EU SOU, e se você não responder a pergunta, eu Maate, farei uma ferida em sua alma.
- Você não é real. - Eduardo murmurou.


Todos na sala deram um passo a frente, abismados, pois todos ouviram o que ele havia falado, mas não quiseram acreditar, dessa vez eu pude ver um sorriso nos lábios do Tenente.

- Você tem certeza do que esta falando Eduardo, minha voz não parece real para você?
- Eu não falarei nada, para você, SUA PUTA! Sai da minha cabeça, que porra de truque é esse?!


Os soldados se afastaram com medo, o escrivão ficou de pé, incrédulo, o torturador boquiaberto, e o tenente, estupefato.

- Então Eduardo, eu sinto muito... Pela sua alma.


O jovem agora estava com os punhos cerrados, as unhas cortavam a carne de tanta força que ele colocava no aperto, os músculos dos braços pareciam pedra de tão flexionados que estavam, até que a ulna do antebraço direito se partiu, ele apertava os dentes com tanta força que as gengivas sangravam, um grito horroroso saiu entre seus dentes, espalhando uma nuvem de sangue e saliva pelo local.

- MAS QUE PORRA É ESSA? -Berrou Eduardo - DE QUEM É ESSA VOZ? PELO AMOR DE DEUS, FAÇAM ELA PARAR!
- Você quer que eu pare?!
- SIM, POR FAVOR, EU QUERO QUE VOCÊ PARE!
- ENTÃO DIGA O SEU NOME VERDADEIRO E QUEM ORGANIZOU ESSE MOVIMENTO!
- FUI EU! - Ele confessou e na mesma hora a dor no braço parou, apenas a fratura era seu inferno - Foi eu quem organizou tudo, Meu nome é Eduardo Leite, eu juntei a turma de filosofia e sociologia da minha universidade e de outras, me tirem daqui, por favor... por fav...


Ele desmaiou, ninguém falou ou se moveu por longos segundos, até o tenente se aproximar.

- Da próxima vez, eu gostaria de mais confiança, agora tirem ele de Maate. - Ninguém se adiantou - Soldado Ferdinando, tire o Ti... Eduardo da cadeira.
- Senhor! - Ele bateu continência - Perdão senhor, mas... eu não quero chegar perto da cadeira. - O tenente riu.
- Tudo bem, hoje eu faço as honras - Tirou o jovem desmaiado - Mas você vai cortar a árvore do quintal, de cima para baixo, só descansa quando acabar.
- Com prazer Senhor!
- Estão dispensados, vão procurar a verdadeira identidade desse comunista e preparem tudo para o interrogatório de amanhã.

Todos saíram da sala, o tenente logo pegou o balde com água e produto de limpeza e um pano limpo. Ele parou perto de mim, ele hesitou em tocar minha armadura.

- Eu sempre soube que você poderia fazer - Ele abriu a trava da couraça de pregos - Tirar a verdade desses malditos, desde o momento que te vi naquele deposito. Eu me pergunto se todos vocês podem fazer isso... Não claro que não.


O tenente retirou a armadura e agora passava o pano molhado por meu acento e pernas dianteiras, onde o sangue mais escorria. Ele continuava repetindo que eu conseguiria compelir os outros a responder, mesmo tendo certeza, ele estava muito surpreso, tanto que não conseguia nem fazer frases diferentes.

- Você pode entrar na mento do tenente, e fazer ele falar algo? - O Pau-de-Arara logo se arrependeu do que disse - Que besteira minha, não deve ser possível.
- Eu posso... Desde o momento que ele me tocou. Fonseca é um homem supersticioso, demais. Ele tinha três irmãos, dois eram militares que morreram em levantes populistas contra a ditadura, o terceiro irmão, Manoel, é comunista - Os objetos se espantaram - Fonseca descobriu ao investigar a morte dos irmãos, ele interrogou Manoel, prendendo-o em seguida, já fazem três anos, muito amargurado agora dedica a vida como líder dos interrogatórios.

- Você pode fazer o tenente te tirar daqui? - A voz da Pimentinha era puro medo.
- Acho que sim, mas porque eu faria isso? Se o meu dever é esse...


Era madrugada, quando eu ouvi a porta do comodo abrindo, a escuridão era intensa, o soldado Ferdinando havia entrado ali, eu conseguia vê-lo com clareza, suava como alguém doente, doente de medo, segurava um machado na mão, o mesmo que havia usado para cortar a árvore e ele queria me destruir. O feixe de luz da lanterna me delatou, a lanterna me pediu desculpas, Ferdinando estava no limite.

- Você só pode ser satanás! Você é uma cadeira possuída pelo demônio, eu como servo de Deus - Ele ergueu o machado - não posso deixar o diabo livre, mesmo que preso a uma cadeira.
- Você esta sendo ridículo soldado, eu não sou o demônio, você só esta abalado pelo que presenciou e esta presenciando.
- Sai da minha mente - Falou com firmeza - Não irás me tentar! - O machado Descreveu um semi-circulo em direção ao assento de Maate.
- Pare ai mesmo!


O soldado parou centímetros antes de tocar a madeira, na verdade eu fiz sua mente cessar o movimento, seu músculos tremiam de tanta força que ele colocava para continuar o golpe, lagrimas despencavam como uma enxurrada, ele era só tristeza e medo.

- Você cometeu um grave erro.
- Por favor Satanás, me perdoe!
- Agora você barganha com o diabo? que tipo de cristão você é? Eu não farei nada com você, eu só quero uma coisa, que você grite!
- Não, eu não vou gritar!
- ENTÃO BERRE!


Ferdinando gritou, era uma grito de pavor, que alertou todo o quartel. Soldados e oficiais desceram no porão, se perguntando o que estava havendo, pois acharam que era o grito de algum prisioneiro, mas os próprios prisioneiros estavam assustados, Tenente Fonseca desceu a passos apressados, empurrando todos os militares que estavam a sua frente, o tenente foi direto para a cela onde eu estava, ligou os refletores e pegou o Soldado Ferdinando segurando um machado com a lamina a centímetros de mim.

- Soldado Ferdinando! O que significa isso? Largue agora o machado! - Fonseca era fúria.
- Eu vim aqui matar o diabo senhor!
- Como é que é? Largue o machado soldado!
- Ferdinando - Maate chamou a atenção do soldado - Agora você vai subir o machado!
- Não! - Com os braços trêmulos ele ergueu o machado - saia da minha mente!
- Soldado! Abaixe a arma - Outros soldados gritavam para o companheiro.
- Agora, com toda sua força você vai descer o machado, mas na direção do chão.

O soldado gritou e o machado desceu com velocidade, mas com um pequeno desvio a lamina foi direto no concreto, trincando o fio e cravando no chão. Ferdinando arfava, exausto e atônito. O tenente o segurou pela gola e o algemou, gritou para levarem ele para uma sela e ordenou todos voltarem aos dormitórios, o tenente estava furioso, logo o tumulto foi dispersado e o silencio voltou a reinar.







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